quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Deserto

"Eis-me
Tendo-me despido de todos os meus mantos
Tendo-me separado de adivinhos mágicos e deuses
Para ficar sozinha ante o silêncio
Ante o silêncio e o esplendor da tua face
Mas tu és de todos os ausentes o ausente
Nem o teu ombro me apoia nem a tua mão me toca
O meu coração desce as escadas do tempo em que não moras
E o teu encontro
São planícies e planícies de silêncio
Escura é a noite
Escura e transparente
Mas o teu rosto está para além do tempo opaco
E eu não habito os jardins do teu silêncio
Porque tu és de todos os ausentes o ausente."
Sophia de Mello Breyner Andresen

Andresen, descrevendo seu "encontro" com o divino, mostra uma perspectiva religiosa contemplativa e uma divindade passiva. Para mim, pentecostal e fundamentalista, ao menos num primeiro momento esta parece ser uma perspectiva muito distoante da bíblica, mas uma análise mais atenciosa me levou a outras conclusões.
No primeiro verso a autora descreve pontos que poderíamos chamar de condições para um encontro real com a divindade. Já na segunda linha ela fala sobre o que na filosofia é chamado de esvaziamento, condição necessário para se adquirir um conhecimento puro e livre de preconceitos. Numa perspectiva religiosa cristã essa ideia se assemelha a santificação. Já no Antigo Testamento, temos a lavagem do sacerdote como requisito para o labor religioso[1] e ainda no Novo Testamento temos a repetição deste processo, agora, através da Palavra[2]. Mas o paralelo mais gritante é a ideia de morte do "velho homem" seguida de um novo nascimento, condição essencial para a comunhão com Deus[3].
Na terceira linha, ao falar sobre o abandono de qualquer tipo de intermediário, a autora se encontra com uma das quebras de paradigma que encontramos no Novo Testamento em relação ao Antigo.
A autora descreve seu encontro de maneira totalmente independente de "atravessadores". A autora não se descreve ouvindo através de guias, ídolos ou qualquer tipo de ícone. O encontro é totalmente independente. Ao olharmos para o Antigo Testamento vemos uma religião bastante diferente: ninguém, a não ser o sumo sacerdote, entra no lugar santíssimo; quando Deus quer falar, fala através de um profeta. Há a possibilidade de que tenhamos, no livro de Jó, uma quebra deste paradigma quando Jó declara que antes ouvia mas então passa a ver o Senhor[4], mas alguns podem considerá-lo um sacerdote dado que ele começa sua história sacrificando. Inegável, porém, é que esta quebra é, no mínimo, anunciada nos profetas[5][6]. Fato é que esta quebra só é ampla no NT, e recebe destaque por seus diversos autores[7][8]. O próprio Jesus, ao ensinar sobre a oração, aconselhou-nos a orar em local reservado, longe da vista dos outros[9]. Ponto relevante é que na perspectiva cristã "a fé vem pelo ouvir", aqui parece haver um contrassenso, mas é importante perceber que a pregação revela a realidade divina mas exige-se um relacionamento pessoal entre o crente e Deus[10] .
No segundo verso a autora se aproxima do deísmo. O "encontro" se dá em uma dimensão impessoal em relação à divindade. No "encontro" a divindade está "ausente". O encontro só é inteligível no sentido de se chegar ao conhecimento da atuação ou característica divina visto que a divindade é ausente. Mas ainda assim há uma observação a ser feita. Não é apenas a divindade que se cala mas há um silêncio, uma ausência de "todas as ausências", há uma falta de acalento por um ombro ou por um toque, e a sensação é a de se passar por uma noite "escura e transparente". Não é difícil achar este sentimento na Bíblia e, surpreendentemente, ela é encontrada no próprio Cristo, "Deus meu, Deus meu, porque me desamparaste?"[11].
Na terceira linha do último verso temos algo próximo ao que o autor de Hebreus define como Fé: "a prova das coisas que não se veem". Há uma certeza de que Ele está lá, mas transcendente, inalcançável, ponto no qual a autora de aproxima ainda mais do deísmo, assim como nas duas últimas linhas onde a autora de declara ausente dos jardins da divindade ausente.

[1]Depois traga Arão e seus filhos à entrada da Tenda do Encontro e mande-os se lavar. (Êxodo 29:4)
[2]Vocês já estão limpos, pela palavra que lhes tenho falado. (João 15:3)
[3]Ora, se morremos com Cristo, cremos que também com ele viveremos. (Romanos 6:8)
[4]Meus ouvidos já tinham ouvido a teu respeito, mas agora os meus olhos te viram. (Jó 42:5)
[5]E, depois disso, derramarei do meu Espírito sobre todos os povos (Joel 2:28)
[6]porque a terra se encherá do conhecimento da glória do Senhor (Habacuque 2:14)
[7]Havendo Deus antigamente falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, a nós falou-nos nestes últimos dias pelo Filho,A quem constituiu herdeiro de tudo, por quem fez também o mundo. (Hebreus 1:1,2)
[8]Pois há um só Deus e um só mediador entre Deus e os homens: o homem Cristo Jesus (1 Timóteo 2:5)
[9]Mas quando você orar, vá para seu quarto, feche a porta e ore a seu Pai, que está no secreto. (Mateus 6:6)
[10]Portanto, irmãos, rogo pelas misericórdias de Deus que se ofereçam em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus; este é o culto racional de vocês. (Romanos 12:1)
[11]Por volta das três horas da tarde, Jesus bradou em alta voz: “Eloí, Eloí, lamá sabactâni?”, que significa “Meu Deus! Meu Deus! Por que me abandonaste?” (Marcos 15:34)
[12]Hebreus 11:1